Por que estudantes de medicina deveriam estudar arte?

MED Talks
4 min readMay 22, 2020

--

Pinturas, filmes, esculturas, teatro, música e… medicina? Afinal, medicina tem alguma coisa a ver com arte? Segundo Hipócrates, a resposta é sim! Para esse importante estudioso, a medicina é um tipo de arte, já que possibilita a sistematização do conhecimento sobre a saúde do ser humano e estabelece princípios éticos de conduta para os médicos. Ao longo de séculos, outras pessoas contribuíram para a construção desse saber, o qual foi incorporado à coleção hipocrática, que procura explicar o porquê das doenças, os seus prognósticos e as suas terapêuticas.

Muitas mudanças ocorreram desde o tempo do Asclepeion, o templo curativo da Grécia Antiga, até hoje, tanto na medicina como nas artes, sobretudo na contemporaneidade. Então, como fica a relação entre essas duas esferas de conhecimento nos dias de hoje?

Sucintamente, a arte aplicada ao estudo da medicina é capaz de desenvolver múltiplas habilidades no estudante, as quais contribuirão para que ele possa oferecer um atendimento de qualidade para o paciente. Esse comprometimento do futuro médico com seu aprimoramento se relaciona diretamente com um conceito caro aos profissionais da área de saúde: o profissionalismo, que diz respeito a princípios que devem ser seguidos a fim de garantir, dentre outros, o bem-estar do paciente.

De acordo com um estudo realizado na Escola de Medicina Parelman da Universidade da Pensilvânia, o estudo da arte aprimora a capacidade de observação dos estudantes. Isso pôde ser constatado por meio da observação de alunos do primeiro ano do curso de medicina que foram divididos em dois grupos: um com aula de artes e o outro sem. Utilizando o método de ensino Artful Thinking, a primeira turma foi estimulada a observar, descrever e interpretar obras de arte, além de trocar opiniões sobre elas entre si durante três meses. Como resultado, os alunos desse grupo foram mais observadores e detalhistas ao analisarem imagens, se comparados ao outro grupo. Os alunos da primeira turma desenvolveram thinking routines, isto é, aprenderam a usar a curiosidade, a criatividade e o raciocínio para assumirem uma postura ativa perante o conhecimento.

A acurácia na habilidade de observar é extremamente importante para que o médico constate no paciente, por meio de, por exemplo, sua postura e fisionomia, sinais físicos típicos de certas doenças, além de ser uma ferramenta valiosa para diminuir o número de exames complementares, ao fazer correlações clínicas corretas. Passeando por um museu, o médico José Geraldo Speciali notou na fisionomia da caricatura O Grito de Munch sinais característicos de cefaleia em salvas. Assim, como também é professor na Universidade de São Paulo, incluiu em suas aulas o artifício de ensinar utilizando pinturas. Ele não foi o único a se apaixonar por “desvendar as histórias secretamente contidas em cada tela exibida em um museu”, como disse Armando Bezerra, autor das obras As Belas Artes da Medicina e Admirável Mundo Médico.

Não são apenas as habilidades cognitivas que são beneficiadas pela apreciação de obras artísticas. Outra faceta muito cara ao profissionalismo médico é o altruísmo perante seu paciente, de forma a construir uma medicina humanizada. Assim, a arte pode ser útil para aprimorar a capacidade de enxergar o paciente de forma holística, ou seja, considerar a linguagem não-verbal como uma rica fonte de informação.

Outra aplicação das artes ao ensino médico são os role-plays, uma espécie de teatro em que um paciente fictício é examinado por estudantes. Os alunos são acompanhados por um professor, o qual observa a consulta que, apesar de ser uma ficção, deve ser encarada com a mesma seriedade que merece na vida real. O objetivo dessa prática é desenvolver a capacidade de comunicação dos estudantes.

A apreciação de uma obra artística envolve sentimentos e concepções pessoais e, portanto, múltiplas interpretações. Tanto o método Artful Thinking quanto as Visual Thinking Strategies estimulam que os indivíduos compartilhem suas visões e troquem ideias, o que os tornam mais dispostos a aceitar outras opiniões. Na prática médica, essa disposição favorece o trabalho em equipe do médico, que é extremamente importante para oferecer um tratamento interdisciplinar para o paciente.

O uso da arte pode ainda colaborar para aliviar o estresse do dia a dia dos estudantes ou dos profissionais da área da saúde. É isso que relata Marcelo Collaço Paulo, oncologista há 40 anos, que tem as artes plásticas como sua segunda paixão e válvula de escape. Além de apreciar a arte, ele também a pratica, não só no cotidiano, por meio da medicina, mas também como escritor, já que é autor de Câncer, o lado invisível da doença. Outro médico-escritor é Moacyr Scliar, que escreveu A paixão transformada: história da medicina na literatura. O autor afirma que “a medicina é um mergulho na condição humana. A literatura também”.

Em uma frase curta poderíamos sintetizar a razão pela qual um estudante de medicina deveria estudar artes: a medicina é uma arte científica. Quando o estudante aprecia a arte, ele potencializa as suas habilidades cognitivas e a sua sensibilidade. A partir daí, a ciência é usada como meio, o bem-estar do ser humano é visto como o fim, e assim a medicina é consagrada como arte a partir de sua prática humanizada.

Texto por Eduarda Nogueira.

Revisão por Nicolas Teixeira Cabral.

Imagem por Norman Rockwell.

>> Este texto reflete exclusivamente a opinião do autor, e não a da Equipe MT!

--

--

No responses yet